Da minha infância, passada nos anos 80, uma das recordações que guardo é de viajarmos, uma vez por ano, para Chaves. Sim, Chaves! Aquela água, que brota do solo em ebulição, já os romanos a utilizavam para fins medicinais e os meus pais não eram diferentes. Uma vez por ano lá íamos nós. Tomávamos o comprimido para o enjoo e fazíamos a viagem no tempo em que o Minho e Trás-os-Montes eram separados por horas de viagem.
Sem tablet nem Internet, pergunto-me agora o que é que eu, com os meus 8 ou 9 anos, fazia para passar o tempo na altura… Recordo-me que, entre a ida matinal às termas para beber um copo da água milagrosa e a dose da tarde, passava o tempo nos baloiços do parque, ou ia à piscina municipal.
Recordo-me ainda da Ponte Romana, de passear nas ruas de Chaves e ter ganho o meu primeiro canivete de Palaçoulo, daqueles com um garfo. Sim, porque na altura qualquer rapaz de 9 anos devia ter o seu próprio canivete. Se a memória não me engana, eu queria antes uma faca, mas lá cedi e aceitei o canivete. Como se o Rambo fosse capaz de usar um canivete…
Voltar a Chaves passadas três décadas foi como se entrasse numa cidade totalmente desconhecida. Certamente que a cidade evoluiu e cresceu imenso, mas deveria haver algo que me despertasse as recordações de infância. Nada… Até que chegamos à ponte e aí sim, lá está ela, presente na minha memória. Onde foi o parque de campismo agora é um belíssimo relvado à beira-rio, onde as primeiras chuvas do Outono fazem crescer cogumelos que rebentam aqui e ali por entre a relva.
Eu e o Maurício separámo-nos, cada um com a sua máquina, e passamos ali bem mais de uma hora a fotografar o parque, o rio, a ponte, as ruas. Quando demos por ela já era escuro.
À noite, um belíssimo jantar da mais suculenta carne que comi este ano. E agora desculpem-me os defensores de um modo de vida mais sustentável, mas seria pecado não comer aquele naco de vitela na brasa, que ia regularmente empurrando com uns tragos de um belíssimo tinto. Aliás, desconfio que os romanos só descobriram as propriedades terapêuticas das águas termais após a descoberta deste néctar. In vino veritas…
Como forma de definir o quão agradável estava o jantar, basta dizer que os planos para fotografar Chaves à noite foram tacitamente cancelados. A conversa à mesa chegou às minhas recordações de infância e, para minha surpresa, no final do jantar o casal com quem estávamos levou-nos às Caldas de Chaves.
De imediato todo aquele local me veio à memória. O pequeno edifício redondo, com o átrio no centro, o balcão de pedra onde entregávamos o copo graduado e pedíamos determinada quantidade de água. Nos primeiros dias de “tratamento” tínhamos de começar com apenas 40 mililitros daquela água, algum tempo depois 60ml e, mais para o final das férias, quando o nosso organismo já estivesse habituado, bebíamos uns generosos 80 ou 100ml.
Sentávamo-nos à espera que a água fosse arrefecendo enquanto bebíamos pequenos goles para não queimar a língua. Se não me engano, aquelas cadeiras de madeira pintadas de branco ainda são as mesmas. De repente, viajei no tempo e sim, esta é a cidade de Chaves das minhas memórias de infância.
Como se não fosse suficiente voltar a este lugar, para completar a surpresa o Zé tirou do porta-luvas uma caneca que anda sempre com ele e encheu-a com aquela água quase em ebulição. Qual graduação qual quê! Agora sou um homem feito e é de caneca cheia mesmo!
Assim que bebi o primeiro trago recuei 30 anos, é impossível esquecer aquele sabor. Geralmente, quando se fala em recordações de infância pensamos imediatamente na memória visual. Mas, para mim, o olfacto e o paladar são igualmente importantes. Há sabores que não se esquecem e este é um deles.
Na manhã seguinte, partimos de Chaves determinados em iniciar este projeto de fotografar a Estrada Nacional 2, mas uma coisa é certa, daqui a 30 anos ou 30 dias, regressarei a Chaves.
Hugo