Podíamos ter continuado na Estrada Nacional 2 a partir de Góis, de onde terminámos a etapa 3. Mas depois de olharmos bem para o mapa, decidimos que uma breve pausa na estrada para ver mais para lá dela podia ser uma boa ideia. Até agora, até aqui, até Góis, pouco saímos da estrada. Sabemos que estamos a perder alguns locais bonitos, interessantes, únicos. Mas também sabemos que é impossível estar em todo o lado ao mesmo tempo, ou que, se decidíssemos mesmo conhecer tudo para lá da estrada, não seria apenas uma aventura, não duraria alguns meses ou ano, seria projeto para o resto das nossas vidas. Aliás, seriam necessárias mais vidas porque se é verdade que o nosso país é pequeno, conhecê-lo a fundo leva tempo. Muito tempo, tanto tempo, que é tempo que ninguém tem.
Posto isto, para não nos desviarmos muito da ideia inicial, decidimos que a sair da estrada seria por poucos, muito poucos quilómetros. E, até Góis, cumprimos. E, daqui para a frente, pretendemos cumprir. Como não pode haver regra sem exceção, abrimos a mesma com uma visita às Aldeias do Xisto que ficam ali bem juntinhas à Estrada Nacional 2. Por agora, nesta etapa, foram quatro. Mas ainda temos mais duas pelo caminho, uma delas sendo mesmo atravessada pela “nossa” estrada.
Mas, mesmo esta exceção foi calculada e estas quatro primeiras aldeias ficam ali bem ao ladinho, dando quase a sensação de que se puséssemos a cabeça de fora da janela do carro veríamos as aldeias. Quase…
Comareira, Aigra Nova, Aigra Velha, Pena. Ficam bem perto do Km 281. Não são muito grandes, mas merecem e devem ser conhecidas, visitadas, vividas. Para sermos sinceros, não planeámos nada bem esta etapa. Ou melhor, fizemos um breve rascunho ali junto ao Natal, mas que depois, por falta de tempo e do tempo para a família, ficou assim mesmo, um rascunho. Neste rascunho, estava assinalado que o nascer do dia ia ser na Comareira e o final do mesmo na aldeia da Pena.
Dia 8 de Janeiro saímos de casa já passava das 6 da manhã. Demoraríamos cerca de uma hora a chegar a Comareira e o nascer do sol seria às oito menos pouco. Gostamos de chegar e ter tempo para montar o equipamento, tentar perceber qual o melhor local, chegar ainda com as luzes artificiais acesas para aproveitar o que elas nos oferecem, o céu na cor azul, ali pintada entre o fim do preto da noite e o laranja/púrpura do amanhecer. Mas saímos tarde, uns bons quinze a vinte minutos atrasados.
Na Comareira saímos do carro, mas rapidamente sentimos que podia não ser a melhor das aldeias para ver e fotografar o nascer o sol. Aigra Nova, como também fica lá “em baixo” não seria solução, pelo que continuámos a subir até Aigra Velha. A idade ainda é um posto, diz-se…
Aigra Velha
Tem “meia-dúzia” de casas. A vista daqui é fantástica. Chegámos e, para azar ou para nos castiga pela hora “tardia”, a iluminação das ruas foi desligada. Começamos a tentar sentir a aldeia. A luz do dia começa a despontar. A Patusca começa também ela a acordar. Enquanto andámos por Aigra Velha, andámos com a Patusca atrás. Que cadela simpática. Não esboçou qualquer tipo de medo, de desconfiança. Percorremos as poucas e pequenas ruas. As ovelhas saem para pastar. Ouvem-se os badalos. São a única coisa que ouvimos no silêncio da manhã. O céu está limpo e o ar frio, muito frio mesmo, mas não o suficiente para fazer nevar. Mas ainda assim bastante enregelante.
O Hugo aproxima-se para fotografar as ovelhas, mas elas não são como a Patusca e retiram-se com receio. Aconchegam-se todas no mesmo espaço, “protegidas” por um trator. Só voltam a sair quando nos afastamos mais. Com o sol já acima do horizonte, uma pastora sai com um rebanho. Chama pelas cabras, diz palavras em tom alto. Umas imperceptíveis, outras que não podemos reproduzir aqui. A vida na aldeia é assim, pura, sem tiques de gente de bem. Uma das cabras vai mais lenta, cabisbaixa. Parece que está doente, não lhe deve sobrar muito tempo de vida. Não deixamos de sentir alguma tristeza. Pouco tempo depois desaparece da nossa vista, mas continuamos a ouvir, ao longe, a sua voz, as suas palavras de gente de trabalho.
Quando damos por terminado e decidimos que está na hora de continuarmos, de seguirmos para a próxima aldeia, eis que a vista para o vale, para o horizonte, para o ponto cardeal contrário ao do que passámos a manhã a fotografar, quase que nos penitenciamos por ter falhado tão espetacular cenário. É assim, tal e qual, quando não conhecemos os locais, quando chegamos de noite e quando não fazemos o trabalho de casa como deve ser. Mesmo assim ainda conseguimos uma fotografia ou outra, mas nada comparável ao que teríamos conseguido se as câmaras tivessem registado aquele cenário minutos antes…
Aigra Nova
É mesmo mais nova, mais recente, mais cuidada, maior. Somos recebidos por dois cães. Ladram à chegada do carro. Ladram e tentar cheirar os que chegam. Paramos o carro e saímos. Eles param de ladrar e começam a dar à cauda. Ótimo, aparentemente são amistosos e começam a cheirar a nossa roupa, as mochilas. Olham insistentemente para nós, agora em sinal de paz. Perdem o interesse e seguem, lado a lado, em direção à aldeia, em direção ao sol que bate nalgumas fachadas das casas. Sentam-se para descansar, como quem já cumpriu o seu dever.
Aproveitamos para conhecer Aigra Nova. As vistas daqui também são fantásticas. As casas estão bem cuidadas e há a Fonte dos Namorados. Pode experimentar as suas águas, mas não leve a caneca, que ela já faz parte da mobília, fará falta a quem chegar a seguir. Há um Eco-Museu, uma loja das aldeias do xisto/café/posto de informações. Há mais cães, um deles mais novo e que ainda só pensa em brincar, seja com o que for.
Despedimo-nos e por esta altura precisamos de um pequeno almoço para repor algumas calorias. Num café próximo, ou melhor, num café, que pode ser café, eventualmente restaurante, ou talvez também mini-mercado, damos cabo de uma despretensiosa tosta mista. Há momentos em que o mais simples nos pode parecer um manjar. Depois de acertados alguns pormenores para o que faltava da etapa e de ideias para os outros nossos projetos, estava na hora de voltarmos à estrada, de regressarmos às aldeias do xisto.
Comareira
Não vamos guardar o segredo para o fim. A Comareira é mesmo a mais pequena das quatro aldeias que visitámos nesta etapa. Para que não nos sentíssemos sós, somos recebidos por… sim, já devem por esta altura ter adivinhado: dois cães. Parecíamos “O Rapaz dos Hipopótamos” (livro de Margaret Mahy e Steven Kellogg). Um deles ainda marcou território num dos pneus do carro. Depois, foram-se embora, tão calmamente como chegaram. Deitaram-se ao sol, talvez para mais uma sestinha, que o trabalho pode ser pouco por esta altura, mas é duro.
“Entramos” na aldeia. Ou no hall de um apartamento T0. Está ali tudo à vista, não há muito para descobrir. Descemos à direita pela rua empredrada que desagua num trilho. Há um tanque de lavar a roupa abandonado à sua sorte. Há gatos e ouve-se um animal no curral. Não se vê ninguém, mas conseguimos ouvir duas vozes e o som de uma televisão. Aparentemente, dos únicos habitantes da Comareira por estes dias. Ou talvez de todos os outros. Se quer passar uns dias longe da confusão, a Comareira é o sítio ideal – existe uma casa de alojamento local com muito bom aspeto. Aliás, aqui, nesta aldeia do xisto, aparentemente nem guerra entre cães e gatos existe, cada um descansa à sua maneira, sem se importar muito com o outro.
Almoço em Góis
Chega a hora de partirmos. O almoço decidimos que será em Góis. Não sabemos ainda bem em que restaurante, vamos deixar para pesquisar mais perto e, depois, seguir o instinto – falha algumas vezes, mas acerta muitas mais 🙂
Terminámos a etapa 3 em Góis, era já noite. Provámos as Gamelinhas (doce típico) e combinámos que se não fosse pela Estrada Nacional 2, que voltaríamos com a família a este cantinho tão agradável de Portugal. Afinal, não regressámos com a família, mas desta forma também já temos uma boa desculpa para revisitarmos Góis.
A oferta de restaurantes é vasta, pelo que não estava nada fácil a tarefa da escolha. Referimos o instinto atrás, mas há outro método mais científico, talvez menos falível ainda: o método um-dó-li-tá!
E o tá caiu sobre o restaurante Casa da Natureza. Fica ali praticamente ancorado no Rio Ceira. Está uma brisa fria, pelo que optámos por comer no interior. Elegante, com pormenores engraçados e cuidados. Ir à casa de banho é outra experiência, com toque de anos passados. O lavatório é uma panela. Há pasta de dentes Medicinal Couto, há máquina de barbear, há restaurador Olex. Viajamos até aos anos 80.
O Bife à Casa estava no ponto e bastante saboroso. Aliás, há muito que não um bife e molho não sabiam assim tão bem. Tão bem que desapareceu do prato. Tudo. As bochechas de porco também não ficam atrás. Certamente outros pratos da ementa também não. Nota-se que há cuidado no que aqui se serve ao visitante.
Mas há mais vida e estrada para além da comida e o relógio avança a toda a velocidade. Daqui até à aldeia da Pena é um salto, mas não um pulinho, pelo que é bom meter rodas ao caminho. De carro ainda são uns 25 minutos, mais minuto, menos minuto.
Pena
A maior das quatro aldeias do xisto que percorremos nesta etapa quatro. O caminho e a paisagem até chegarmos à Pena são magníficos. Apetece parar a cada 5 metros. A tentação é grande mas resistimos. Chegar à Pena é quase como entrar num livro de época, antigo, talvez mágico. Paramos o carro logo ali à entrada, junto à ponte que nos leva a entrar na aldeia. Por baixo corre a ribeira da Pena, com as suas águas cristalinas e frias. A nascente é ali bem perto e o terreno é rochoso. A ribeira não só embeleza a aldeia, pois os campos próximos são regados a partir dela. E el por ali fica mesmo quando tempo aquece mais, para alegria dos habitantes locais e os visitantes, forasteiros, que se refrescam nas suas águas.
Da Pena ficamos deslumbrados com os majestosos Penedos de Góis, com destaque para o “Penedo Abelha”, onde alguns conseguem ver o contorno da cada de um monstro de pedra. É tudo uma questão de imaginação. Ou não. Se gosta de caminhar, percorrer trilhos, são vários os que na Pena encontra e que levam a explorar a beleza dos penedos e do que os envolve. Há percursos para todos os gostos e grau de dificuldade.
O Hugo segue aldeia adentro. O Maurício prefere concentrar-se na ribeira, nas suas cascatas, na vegetação. No percurso da água podemos observar o que podem ser (ou podem ter sido) moinhos de pedra. Na rua que sobe à direita, a que fica mais junto à ribeira, encontramos a placa que nos indica o caminho para o Moinho, o Moinho de Rodízio do Poço da Lontra. O trilho está molhado. As pedras húmidas e com algum musgo. É preciso descer devagar para não escorregar. Mas chegando lá baixo, somos abraçados por uma paisagem de onde não apetece sair. Apetece fotografar, mas ao mesmo tempo ficar a ouvir a natureza. Se há paraísos na terra, podemos reclamar este para nós.
Entretanto, o Hugo é confundido com um representante de alguma empresa pública. É um forasteiro, com câmara na mão e isso, para algumas pessoas, para pessoas que necessitam de trocar palavras, é o suficiente para deixar transbordar lamentos e preocupações. A senhora mostra a sua preocupação com a pequena ponte que faz a entrada na aldeia. Que todos os dias vai ver como está. Que há uma “carreira” que lá chega e que um dia pode não entrar, se a ponte não aguentar. Não somos técnicos em pontes, mas não nos pareceu que estivesse assim como que a dar o último suspiro. Talvez tivesse sido um desabafo de quem precisa de forasteiros para desabafar. São assim os nossos cantos e gentes mais genuínas…
O final de dia fotográfico era para ser aqui, na Pena. Era e era merecido, porque este local encanta e deve ficar encantado quando o dia termina. Mas, no caminho, passamos pela aldeia Ribeira Cimeira que, não sendo do Xisto, consegue piscar o olho a quem por ela passa.
Ribeira Cimeira
Foi a aldeia extra do dia, como a apelidamos. Não estava nos planos iniciais. Surgiu assim à nossa frente, elegante, branca, com ar de aldeia, de aldeia pequena, aldeia bem portuguesa. Ao lado, corre uma ribeira. Há uma ponte velha. É para aí que vamos para fechar o dia. Descemos até junto da água. Perdemo-nos entre luz, pedras, ponte, fotografia. O espaço é exíguo, mas oferece tanto às imagens que vamos guardando. Aos poucos o escuro começa a tomar conta do dia, ou da noite, como se preferir.
Estacionamos o carro num ponto ligeiramente mais elevado. Conseguimos ter uma visão de toda a aldeia, da Ribeira Cimeira. Mas com o drone conseguimos um ponto de vista ainda mais “original”. Temos de trabalhar depressa, antes que o azul do céu passe a negro. A hora azul funciona sempre tão bem em fotografia e não a queríamos perder por nada.
Pilotar o drone nestas condições, sem luz, é sempre uma aventura, mas tão gratificante quando tudo corre bem. As chaminés fumegam. Não se vê ninguém nas ruas. Não se ouve vivalma. Apenas um carro. Dois. E o nosso e nós. Está na hora de partir, pois o dia por aqui terminou.
Se pensa fazer a Estrada Nacional 2, a pé, de bicicleta, de mota, de carro, de carro de mão, ou qualquer outra forma, não pode mesmo deixar de visitar estas quatro aldeias. Aldeias com charme, aldeias que nos levam a viajar para outros tempos, aldeias que são tão nossas, tão portuguesas.
Passo a passo, de Chaves até Faro.
[…] Neste post escrevemos tudo o que fizemos nesta Etapa 4: o que vimos, o que sentimos, por onde andámos, o que encontrámos. E fotografámos. E, naturalmente, fizemos um pequeno vídeo que serve não só de resumo, mas que sirva para inspirar todos os que nos seguem a visitar estas aldeias e a fazerem a Estrada Nacional 2. […]